Li Lu : falando de Munger
Ele tornou possível o investimento em valor em uma prática global
28 de novembro é o primeiro aniversário da morte de Charlie Munger e, com a colaboração da Munger Academy e do CITIC Publishing Group, o pupilo de Munger, Li Lu, gestor de ativos da família Munger e fundador da Himalaya Capital, aceitou uma entrevista online.
A seguir está uma transcrição redigida desta entrevista.
A pessoa que você realmente ama nunca partirá.
P: Você pode nos contar sobre seus pensamentos e sentimentos ao longo do último ano?
Li Lu: Hoje é um dia muito especial. Charlie faleceu há um ano, e hoje também é o Dia de Ação de Graças nos Estados Unidos. Minha primeira longa conversa com Charlie foi no Dia de Ação de Graças em 2003. Conversamos por quatro ou cinco horas antes de nos tornarmos oficialmente parceiros, e agora se completam 20 anos após sua morte.
No fim de semana de Ação de Graças em que Charlie faleceu, ele estava com a família, ainda conversando e rindo normalmente durante o jantar.
Mas, quando chegou a hora da sobremesa, ele começou a se sentir um pouco mal e foi levado ao hospital na manhã seguinte. Cerca de um dia depois, ele partiu.
Charlie viveu no seu próprio ritmo durante toda a vida, inalterável, insistindo em trabalhar e passar tempo com a família até o final. Estivemos juntos por 20 anos, e neste ano desde sua morte, muitas vezes me lembro das conversas que tive com ele.
Minha filha mais velha faleceu alguns meses depois de Charlie, uma tragédia inesperada.
Em um período de dois ou três meses, perdi Charlie, que era como um pai para mim, e perdi minha filha mais velha. Senti profundamente a dor da perda em minha vida. Isso também me deu uma compreensão maior da vida.
Uma das lições que aprendi é que a pessoa que você realmente ama nunca parte. Eu ainda sinto que tanto Charlie quanto Julia estão conosco a qualquer momento, e isso é o que nós, chineses, chamamos de espírito eterno. Neste dia especial, um dia para celebrar a gratidão como um feriado, sinto ainda mais saudade deles.
Charlie nunca decepciona.
P: Qual é a maior lição de vida que você aprendeu com Munger?
Li Lu: Nós costumávamos tomar café da manhã juntos por volta das 7 horas, e Charlie sempre chegava mais de meia hora ou até uma hora mais cedo.
Depois que sua esposa faleceu, começamos a jantar juntos todas as terças-feiras. Há um livro chamado "A Última Grande Lição" (ou "Tuesdays with Morrie"), que fala sobre um jovem e um idoso se encontrando todas as terças-feiras, então escolhemos a terça-feira. Isso durou mais de dez anos. Conversamos sobre tudo, deixando muitas memórias calorosas, e também aprendi muito.
A coisa mais importante que Charlie significa para mim é que ele é um verdadeiro modelo.
Cada um de nós precisa de modelos na vida, e eu encontrei muitos, desde os tempos antigos até os modernos, desde que era criança.
Mas é muito difícil seguir um exemplo real na vida, porque pessoas reais sempre têm todos os tipos de problemas. Nós falamos sobre a "conclusão do caixão", onde, após a morte, podemos manter as partes boas do passado. Mas, na realidade, temos que conviver com a complexidade da vida real.
Convivi com Charlie por mais de vinte anos, seja no café da manhã ou no jantar todas as terças-feiras, e conversamos quase todos os dias.
Nunca encontrei nada que ele tenha feito que me decepcionasse. Pelo contrário, seus pensamentos e ações sempre me motivaram. Foi uma experiência única na minha vida. Charlie é uma pessoa que é sempre consistente, coerente e profundamente sábia.
Charlie tanto nasceu quanto se destacou. Como Confúcio, na maneira como nós chineses o entendemos, ele amava profundamente sua família, tinha grande afeição por seus parentes e mantinha amizades de profunda lealdade.
Ao longo de sua vida, Charlie buscou conhecimento, sabedoria e satisfação espiritual. Por meio do cultivo interior, ele se comprometeu a melhorar o mundo na vida prática. Em outras palavras, ele usou o aprendizado para ganhar sabedoria, utilizou essa sabedoria para alcançar o sucesso no mundo, empregou esse sucesso para ajudar a sociedade e, através de seu exemplo, deixou um legado espiritual para o mundo e para as gerações futuras.
Inúmeros fãs, seguidores e aspirantes a herdeiros de Charlie em todo o mundo compartilham a mesma opinião: Charlie é um verdadeiro modelo a ser estudado e emulado.
A sabedoria universal que ele estudou tem origem contemporânea e é aplicável até os dias de hoje.
Charlie passou sua vida em busca de sabedoria universal e, ao fazer isso, realizou grandes feitos – o sucesso da Berkshire é como um monumento.
Ele também usou essa mesma sabedoria para beneficiar a sociedade, tornando-se um modelo para incontáveis pessoas ao pregar uma forma especial de se comportar, especialmente uma forma de fazer negócios em que todos saem ganhando.
Ao espalhar uma ideia espiritual, deixou-nos um legado espiritual extraordinário. Charlie disse: “Minha espada será reservada para aqueles que puderem manejá-la.” Para mim, essa é a espada que ele nos deixou.
Esse também é um ideal que eu pessoalmente persigo, e à medida que envelheço, tenho me envolvido cada vez mais em ações sociais, especialmente nos últimos anos.
Em 2021, criamos a Fundação Asiático-Americana (Asian American Foundation), que se tornou a organização guarda-chuva mais importante para dezenas de milhões de asiático-americanos nos Estados Unidos.
Planejamos arrecadar US$ 1,1 bilhão em um período de cinco anos. Após três anos, nossa assistência auditada atingiu US$ 2,8 bilhões, e acreditamos que, ao final dos cinco anos, esse número será muito maior do que o inicialmente previsto.
É claro que isso é apenas parte da história, e continuaremos a trabalhar e a servir a comunidade.
Charlie é o arquiteto, e Warren é o empreiteiro geral.
P: Você pode nos ajudar a organizar a filosofia de investimento de Munger a partir de sua perspectiva?
Li Lu: Em primeiro lugar, Charlie adota a exposição original de investimento em valor feita pelo Sr. Graham. Ou seja:
Uma ação é parte da propriedade de uma empresa, não apenas um pedaço de papel;
O mercado existe para ajudar os investidores de valor reais, não para guiá-los no que fazer, o que é o conceito do chamado "Sr. Mercado" (Mr. Market);
Deve haver uma margem de segurança adequada para o investimento.
Charlie valorizava muito esses três princípios básicos. Mas, devido à época em que viveu, ele desenvolveu sua própria contribuição única baseada em Graham, refletida em dois aspectos:
Comprar grandes empresas a um preço razoável dentro do círculo de competência.
Graham viveu em uma época que incluiu a Grande Depressão e duas guerras mundiais. Durante esse período, a economia como um todo sofreu vários traumas, tornando essencial para ele preservar o poder de compra.
Na era de Charlie e Warren, tanto a economia americana quanto a economia mundial estavam se desenvolvendo rapidamente, e o valor estava sendo constantemente criado.
Assim, Charlie percebeu que o investimento verdadeiramente eficaz era comprar um pequeno número de empresas realmente boas e excelentes a um preço razoável dentro do círculo de competência, mantê-las por um longo tempo e aumentar sua riqueza conforme o valor endógeno da empresa crescia. A Berkshire foi construída com base nesses princípios, um feito monumental de Charlie.
Pescar onde há peixes.
Outra contribuição única de Charlie foi expandir o escopo do investimento em valor. Ele disse, famosamente, que investir é como pescar, e há dois princípios importantes para pescar: o primeiro é que você deve pescar onde há peixes; o segundo é que você nunca deve esquecer o primeiro.
O mesmo vale para o investimento: onde encontrar seu círculo de competência? Como construir um círculo de competência?
Dado que todos temos tempo limitado, ele recomendava ir a lugares onde realmente houvesse peixes, onde fosse mais fácil construir um círculo de competência e, uma vez construído, onde houvesse uma gama mais ampla de opções.
Seguindo essa filosofia, Charlie expandiu o investimento em valor de empresas grosseiramente subvalorizadas nos Estados Unidos para grandes empresas americanas em rápido crescimento e, posteriormente, para além dos Estados Unidos, onde ainda há muitas grandes empresas em período de crescimento. Isso tornou possível levar o investimento em valor para uma escala global.
O que temos feito nos últimos 30 anos é praticar e promover o conceito de investimento em valor em escala global, o que está muito alinhado com a segunda filosofia de Charlie.
É por isso que a família Munger confiou à Himalaya o cuidado de parte de seus ativos, e por isso somos amigos há mais de 20 anos, além de amigos, alunos, e, em certo sentido, temos uma relação de proximidade quase como pai e filho. Nosso relacionamento tem muitos níveis.
Warren também mencionou essa complexidade ao falar sobre sua relação com Charlie. Ele comparou Charlie a um arquiteto e a si mesmo a um empreiteiro geral.
Warren vê Charlie como parceiro, seu melhor amigo e, ao mesmo tempo, Charlie, sendo seis anos mais velho, assume uma relação que em certo sentido é quase paternal. Charlie tem essa habilidade e inclinação.
Munger, aos 99 anos, ainda estava investindo.
P: A BYD é um caso de investimento particularmente representativo. Que outros exemplos específicos podem nos ajudar a entender melhor a filosofia de investimento de Munger?
Li Lu: Temos ações da BYD há cerca de 22 anos, e ela nem é a empresa que mantivemos por mais tempo.
Durante esse período, houve pelo menos seis ou sete ocasiões em que o preço das ações caiu mais de 50%, e até 80% em uma ocasião.
Mesmo assim, não nos sentimos muito pressionados, porque sabíamos que a empresa estava criando valor novo a cada ano. É extremamente importante compreender o valor, ser capaz de estimar o valor da empresa em todos os momentos e aumentar seletivamente as participações quando há um desvio entre preço e valor.
Investimos muito nos últimos 30 anos, seja nos Estados Unidos, na China ou em outras partes da Ásia.
Mas acho que o que mais aprendi com Charlie foi sua dedicação ao aprendizado ao longo da vida, algo que considero absolutamente incrível.
Charlie raramente toma decisões precipitadas, mas lê constantemente. Por exemplo, ele leu a Barron's todas as semanas por 50 anos e, nesse período, fez apenas um investimento com base nela.
Ele faz isso com muitas coisas. Havia uma ação que todos odiavam, e que provavelmente não era particularmente politicamente correta.
Charlie estudou a empresa por muito tempo e, aos 99 anos, decidiu investir nela. Uma semana antes de sua morte, o valor dessa ação já havia dobrado desde que ele começou a investir.
Então, mesmo aos 99 anos, ele não perdeu sua paixão por investir, ainda era capaz de ir contra o consenso do mercado e viveu para ver o valor dessa ação dobrar.
Hoje, essa ação ainda está no portfólio da família Munger e continua indo muito bem, assim como a empresa. Este é um exemplo interessante de como Charlie estudou durante toda a vida e continuou próximo da família até o dia antes de sua morte. Pouco mudou em sua vida, o que reflete os princípios racionais que ele sempre seguiu.
A racionalidade de Charlie é baseada e respeita o senso comum. O senso comum, na visão de Charlie, é na verdade a cognição mais escassa.
Ele é obtido pela prática, e quando você viola o senso comum, acaba pagando um preço. Esses custos acabam por comprovar o valor do senso comum.
Uma das ideias racionais mais importantes de Charlie é: "copiar o que funciona, evitar o que não funciona".
Repetir o que o tempo já provou estar certo e evitar o que o tempo demonstrou estar errado é algo extremamente importante.
Na prática, Charlie tinha uma grande admiração por Lee Kuan Yew, em um sentido mais amplo, e, até certo ponto, por Deng Xiaoping.
Ambos conseguiram se posicionar acima de ideologias para copiar o que funcionava e evitar o que não funcionava, utilizando um senso comum que, na época, era considerado perigoso pelo pensamento dominante.
Por exemplo, quando Lee Kuan Yew fundou Cingapura, 70% da população do país era composta por chineses. Qual deveria ser o idioma oficial?